quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Todos, até então.

Era por volta das 2 da manhã, havia perdido a noção de tempo há muito, eu espreitava desnorteada pela janela observando as luzes nos apartamentos, e pensava sobre a existência do dono de tal luz que habitava a aquela distância, instintivamente já estava acendendo mais um cigarro, porém antes de o colocar na boca, relutei, e jurei que seria o último, já havia fumado outros 19, por você, agora eu tragaria o último, pelo fim, também por relutância, foi o mais demorado, a noite estava fria, e o sereno corria pelo céu, e se juntava aos resquícios de lágrimas secas em meu semblante, fingi não me incomodar com aquilo que me causava certo desconforto na face, me sentia nauseada, e com forte enxaqueca, possivelmente devido as tristezas que se projetavam no mais profundo de meu ser durante as horas anteriores, quando me ocorrera a metamorfose, e que ainda refletiam em minha alma.

Não queria dormir, pois sabia que nunca mais seria a mesma, o que eu era ficou para trás, em um passado agora distante, como se nunca tivesse existido tal ser que um dia fôra eu. Encontrava-me perdida, sentada à cabeceira da cama, agora cabisbaixa, as luzes da cidade pareciam cada vez mais distantes, e turvas, todos já dormiam, exceto os malditos e os miseráveis, estava agora exausta, minha visão além de turva, cambaleava, o sofrimento havia vencido meus limites humanos, e assim mesmo, derrotada pelo cansaço adormeci, como quem já não havia mais vida, dormi mal naquela noite, calafrios percorriam meu corpo, e espasmos me sacudiam a todo tempo.

Acordei ao som das badaladas da catedral, era domingo, dia de missa, fui novamente para a janela ver as crianças irem contra vontade em suas roupas engomadas, eu não me sentia muito diferente delas, era o que queriam que eu fosse, vestindo uma máscara, e fazendo meu reles papel na sociedade, de acordo com o que decidiam que deveria ser. Algo me incomodava, sentia um buraco em meu torso, e sabia que não se tratava de fome, então decidi preparar chá, não tinha apetite apesar de não me recordar quando havia sido minha última refeição. Com o chá pronto, voltei à janela, agora chovia, e observava as pessoas tentarem se esconder da chuva correndo para as marquises, me esquivava de beber o chá, agora já frio o deixei de lado, senti vontade de fumar e me recordei que havia fumado todos os meus maços noite passada, me senti mal por isso, havia jurado que não iria mais fumar, cogitei ir a rua comprar cigarros, porém não possuía disposição alguma para ir ao mercado, e encarar as pessoas, então me deitei novamente encarando o teto branco que possuía algumas rachaduras devido a umidade que as chuvas prolongadas haviam causado.

Após um breve período fitando o teto, e tentando desvencilhar minha mente de traiçoeiros pensamentos, pude notar que chuva havia diminuído seu ritmo, agora já não agredia as janelas e peitorais, suspirei profundamente e decidi ir a uma lanchonete próxima, fiz então um esforço enorme e um prolongado movimento para me levantar da cama, via meu reflexo no espelho, manchas negras sombreavam meus olhos fundos, vesti uma peça de roupa que pudesse me manter aquecida, recolhi as chaves e as coloquei no bolso, calcei botas, e tomei o elevador. No elevador estava sozinha, suspirei e de súbito fechei meus olhos por alguns instantes, com meus olhos agora abertos novamente, podia ver a imagem de uma pequena garota, com olhos curiosos que fitavam o chão, enquanto mordia os lábios, ela parecia um tanto quanto nervosa, após alguns instantes fitando o chão, ela me disse, sem levantar a cabeça  –Do que você tem medo? - Surpresa eu não a soube responder. –Você tinha em si todos os sonhos do mundo, então por que os escondeu?, continuou ela. –Por que usa essa máscara?, após essas palavras, me senti desnorteada, minha visão ficou turva, e me desequilibrei, fiquei apoiada nas paredes do elevador por um tempo, até me recompor, quando pude me recuperar, a garotinha já não estava mais lá, eu ainda não compreendera o que ocorrera há pouco , o que me deixou pensativa, quem seria aquela garota? Por que havida dito aquilo? Minha mente estava turbulenta, e meu coração estava disparado, me vi espelho, eu estava pálida, sentia minha boca seca, e uma gota de suor escorria por minha testa, estava apavorada, saí do elevador ainda cambaleando e tomei rumo à rua.


Na rua, eu me sentia invisível e indiferente para os outros, passavam por mim e não me notavam, será que eles me viam como uma pessoa? Alguém com uma vida tão complexa e conturbada como a deles, eu os via assim, todos pareciam ocupados demais correndo de um lado para o outro sem ir a lugar nenhum, com suas vidas e rotinas corridas e estressantes, eu estava totalmente imersa em meus pensamentos que mal pude notar o quarteirões e pessoas que se passavam, marcados de humanizações cinzas, viciadas e sujas,  e assim cheguei em meu destino, uma lanchonete antiga, com uma simpática faixada vermelha, agora já gasta e corroída pelo tempo, não era muito frequentada, e por isso o ambiente me agradava, me sentei próxima do balcão, e o atendente veio ao meu encontro, era um rapaz de boa aparência, que sempre me atendia com um sorriso tímido no canto de sua boca e olhos cortês, ele me perguntou se eu queria o mesmo de sempre, mas como eu não possuía muitas energias, apenas acenei positivamente com o cabeça, por algum motivo, eu tinha a boca emudecida, meus pensamentos me cercavam e me sufocavam, me mantinham calada e cabisbaixa, sentia meus corpo pesado, tudo girava novamente,  nuances de vermelho e outras cores começaram a se fundir em minha mente, tudo se embaralhava, quando repentinamente escutei –Aqui está seu pedido! Você está bem? Parece um pouco pálida, recobrei minha consciência e agradeci, ele se virou de costas com olhos opacos, como se tivesse presenciado um evento bizarro, mas eu não entendia o que me acontecia, apenas sentia um mau pressentimento, então comecei a fitar meu café e sanduíche, resolvi me alimentar. Bebi o café por inteiro, estava quente e amargo, como eu gostava, desceu minha garganta e me aqueceu por inteira, mas deixei uma fatia do sanduíche intacto, não estava com muito apetite, fui então ao balcão para acertar, cheguei lá e a atendente não pareceu me notar, estava lendo um desses livros comerciais clichês feitos apenas para ganhar dinheiro, eu tinha uma enorme repugnância por esses livros que não eram escritos com sangue,  e isso me deixou um pouco aborrecida, então forcei uma tosse, para que ela me notasse, ela fez um "oh" assim que me viu, era sempre assim, ela sempre desatenta em seu mundo falso, e eu precisava chamar sua atenção, me sentia humilhada por isso, eu a franzi o cenho, paguei, e fui embora, sem abrir a boca, estava irritada.

Saindo da lanchonete, cruzei a rua, precisava tomar um caminho diferente, tinha de ir no mercado comprar cigarros e frutas, em meu rumo havia uma rua paralela, onde tinha um viaduto, em baixo desse viaduto havia um homem deitado, ele tinha olhos inexpressivos e desesperançosos fixos em algum ponto distante, seu rosto era fortemente marcado pelas mazelas de sua vida, aquilo me chateou muito, pois eu sabia que ele não era o único, pelo mundo todo haviam pessoas que se escondiam delas mesmas, possuíam vergonha do que eram, escondiam-se do mundo, do sol, e dos outros, não viviam a vida para que se fosse vivida, viviam à espera do fim, para que logo a vida os fosse tomada, pois para eles não havia sentido, a vida não valia a pena ser vivida, aliás, o que era viver a vida? Isso eu não sabia, acho que nunca saberia, sempre me perguntava sobre as coisas da vida, e nunca chegara a nenhuma conclusão. Nesse momento me sentei em uma parada de ônibus, e me lembrei de quando perguntei ao meu pai qual era o sentido da vida, e ele me respondeu que era ser feliz, ao menos era o que todos almejavam, desde então nunca mais o perguntei nada, o achei tolo por acreditar em tal futilidade, cheguei então a conclusão que todos estávamos à deriva da vida, com perspectivas falsas, senti uma grande necessidade de mais um cigarro, então segui meu caminho pela rua, que me parecia torta, e suja.
A mercearia se aproximava, já via na porta o senhor proprietário, era um homem de idade avançada, com problemas auditivos, que tinha uma cara fechada para todos, certamente odiava o que fazia, só o fazia por necessidade de dinheiro, ele se sentava na porta, em uma cadeira de balanço  de madeira, velha e marcada pelo descuido do mesmo, escutando o rádio que era possível se escutar a quarteirões de distância, que noticiava sobre a guerra, e ele apenas acenava com a cabeça como se concordasse com o que era noticiado, enquanto fumava seu cachimbo fedorento , observava a chuva cair, e as pessoas passarem. Perdida em meus pensamentos novamente me desvencilhei do mundo real, e quando me dei conta havia pisado numa poça imunda, e notei que o velho me observava com seus olhos que pareciam esperar por isso há muito tempo, sentia seus olhos rirem de mim, enquanto sua boca continuava decrépita. Fui me aproximando mais e mais da mercearia, e ele me acompanhava com os olhos, e se certificou que eu iria sacudir minhas botas antes de entrar, entrei e ele não disse nada, fui direto para a fruteira, havia pouca variedade, a guerra estava atrapalhando a produção de alimentos por todo o país. Eu não concordava com a guerra, sempre acreditei que cada um deveria fazer o que bem entende sem incomodar o outro, acho também muita tolice tirar a vida de milhares por apenas pensarem de maneira diferente da sua, era algo que realmente me deixava chateada, pensar em tirar a vida de alguém que um dia poderia ser uma pessoa importante para o mundo me deixava realmente magoada, terminei de escolher as poucas frutas que estava em boas condições, e rumei para o caixa, a atendente era a mulher do velho, ela era um pouco mais bem cuidada do que ele, e tinha um semblante agradável, sentia nela uma forte aura materna, algo que me deixava confortável próxima dela, retruquei o sorriso, então  pedi o maço de cigarros, gostaria de cigarros Camel, mas não estavam chegando mais ao país, então pedi maço de Marlboro vermelho --São 6 dólares no total; disse ela, eu acenei com a cabeça e entreguei o dinheiro, peguei minhas compras e saí pela porta, e pude olhar pelos ombros que ela ainda se mantinha sorrindo para mim, com seus olhos quase cerrados, foi algo que me aqueceu o peito de alguma maneira. 

Novamente na rua, com suas pichações e imundices, via a chuva carregar nela sujeiras de meses, na cidade era assim, tudo se corrompia, até mesmo a chuva, que ao descer das nuvens já era contaminada por detritos que humanos produzem, e ao chegar ao seu destino, era violentamente rebatida por concretos cinzentos, as árvores não possuíam espaço para crescer, a natureza não se proliferava, era completamente rebatida pela humanidade, com esses pensamentos, decidi passar por um parque que havia não muito longe de onde eu estava, parques são assim, uma maneira que os homens encontraram de sentirem menos culpados por corromperem a natureza. Eu gostava da natureza, fazia com que eu me sentisse conectada com o todo o mundo, com o passado, o presente, e o futuro, com toda vida que já passou, e passará por nosso planeta, era agradável estar em meio à natureza, sentia que voltara de onde eu vim.


Me escondi em baixo de uma marquise, para acender um cigarro, mas o vento forte trazia com ele folhas, ar gelado, e gotículas, que maltratavam meu fogo. Acendi o cigarro, e dei uma longa tragada, sentia o sabor adocicado descer por minha traqueia e passear por meus pulmões, então expeli uma densa fumaça, que bailou no ar e sumiu junto à paisagem cinza. 

Agora com o cigarro aceso, caminhava para o parque, gostava de ficar com o mesmo por um tempo parado na boca sem tragar, então o tragava forte, e com a mão esquerda o tirava da boca, o que me era estranho, tendo em vista que eu sou destra, o levava até a altura da cintura e batia as cinzas suavemente, e mantinha a fumaça em minha e boca brincando com ela, até que a expelia lentamente, eu a gostava de ver subir e desaparecer, e fui assim, tragando até chegar no parque. O parque não era nenhuma maravilha, ficava em frente à catedral, possuía alguns bancos com tinta desgastada, uma fonte no centro, alguns brinquedos na areia para crianças, e tinha boa parte coberta por uma grama sempre bem aparada, possuía também algumas árvores com folhas dissipadas em seus galhos, já que a maioria se encontrava no chão, pois a chuva as levara para lá, fui caminhando pelo parque através de folhas e gramas molhadas e restos de industrializados até um banco que me dava visão completa da catedral, sentei nesse banco onde eu podia observar de longe a missa, e acendi um cigarro, usando o fósforo na mão esquerda também, me sentia uma a anticristo, vilã dos bons costumes, impondo meus valores imorais e imundos em frente a uma catedral.
 Comecei a fitar a igreja, e de minha distância eu podia ver as pessoas seguindo em filas para receberem a hóstia e a benção, como porcos caminhando para o abatedouro, me sentia péssima com toda aquela situação, me sentia péssima por eles, eu não me aclamava ateia, me via como agnóstica, eu não podia provar nada, mas não acreditava em nenhuma divindade, achava maior bobagem alguém acreditar em um deus que permitia que o mundo fosse como é, com guerras, ódio, caos, simplesmente não fazia o menor sentido para mim, religião deveria ser algo que fosse para pacificar e unir o mundo, não para o destruir, sempre houveram guerras sem sentido, pelo simples fato de certo povo não acreditar nos mesmos dogmas de outro , simplesmente não me fazia sentido, era como um caroço, que me sufocava, e eu não conseguia engolir.

O vento soprava forte, e maltratava meu cigarro, que queimava com ímpeto, ouvi as badaladas dos sinos, a missa havia terminado, as pessoas saiam aos montes, e algumas caminhavam em minha direção, com seus filhos, família, amigos, e passavam por mim, alguns me olhavam de canto de olho, apenas para me pré-julgarem, eu não dava bola, e algumas crianças passavam por mim dando gargalhadas, naquele momento eu me senti muito sozinha, as crianças riam, e os adultos conversavam entre si, e eu me sentia estranha, algo faltava em mim, eu era diferente deles, por que eu não poderia ser feliz como eles? Por que não conseguia rir com eles? Sentia uma súbita vontade de chorar, minha visão estava agora encoberta de um fluido salgado, que desejava escorrer pelo meu rosto, e eu pensei para ele –Fique aí, não deixarei que ninguém o veja, então comecei a fitar meus calçados, para que não notassem meus olhos.
Após um longo período cabisbaixa, a multidão já havia se dissipado, então recobrei meu ar, olhei para o céu, o sol parecia tímido e doente, pouco se mostrava estre as densas nuvens negras, e brilhava em branco pálido e opaco. Era inverno, e todas as folhas, caducifólias, bailavam no vento e saíam por aí, sem rumo, ou pretensões, apenas queriam algo a alcançar, seja o que fosse, era algo realmente invejável, a liberdade que a natureza possui.
Decidi então ir para casa, me sentia fatigada, levantei demoradamente e segui pelos caminhos do parque até uma saída que me deixasse mais próxima do meu apartamento. Fui caminhando pelas ruas vazias e inóspitas de uma capital, faltava apenas virar a rua para que estivesse próxima de meu apartamento, ouvia então um pequeno barulho de sirenes, que aumentava quanto mais eu me aproximava de casa, e via luzes intercaladas em vermelho refletirem pela rua a atingir as vidraças de uma loja de chocolates em frente, que iluminava todo o local, virei a rua, era um comboio de resgate dos bombeiros, e todos os moradores do edifício na calçada, intrigados, haviam sido obrigados a deixar seus apartamentos, a surpresa viria depois.
Via a agitação em frente ao condomínio, fui me aproximando, com passos lentos e cautelosos, estava apreensiva, não entendia o que estava ocorrendo, todos estavam distantes do prédio, ouvi dizerem que os paramédicos estavam a caminho, podia sentir um leve cheiro de gás doméstico vindo do prédio, estava desnorteada e confusa com a situação, a ambulância chegou e ficamos esperando, via dentro do prédio grande agitação, vultos corriam pela janela, barulhos de passos apressados vinham em direção à saída, então saíram da porta alguns bombeiros na frente abrindo caminho, e atrás havia dois homens segurando um corpo, estava sereno, com semblante adormecido, pude o reconhecer, era o homem do apartamento 302, pouco se via ele, não saía de casa, nunca fizera o menor ruído, não fazia ideia do que ocorrera.
Fui chegando mais próxima da ambulância, e pude prestar atenção na conversa: –Nós encontramos remédios para dormir, a válvula do gás de cozinha estava aberta, e todas as janelas fechadas, quando chegamos, ele já estava apagado, disse o bombeiro para o clínico, o clínico estava com olhos tristes, e olhava para o corpo enquanto media o seu pulso, respirou fundo, suspirou e disse –Está sem pulso, acredito que tenha cometido suicídio ontem, olhei então para aquele corpo sem vida, estirado sereno em minha frente, me senti nocauteada como se tivesse recebido uma pancada na cabeça, por instantes, era como se eu pudesse sentir a dor dele, pronto, foi isso, abalou meu mundo por completo, ele havia tirado a sua própria vida.

Depois de ouvir isso, me recolhi para um canto escuro da rua para me esconder, estava sem forças, não conseguia pensar em nada, nem em acender um cigarro, ou qualquer coisa, apenas procurei encosto em uma parede próxima e lá fiquei, encarando o nada por um longo tempo, até que fosse permitido entrar no edifício. No edifício ouvi a síndica falar com um homem da polícia: –Ele tem um irmão em algum lugar, acho que deveríamos notifica-lo, me senti um pouco aliviada por saber que teria alguém para se lembrar dele por algo que não fosse o seu ultimo ato. Subi para o quarto, e me joguei na cama, as badaladas da catedral marcavam 12 horas, adormeci.
Estava adormecida, e escutei um barulho irreconhecível que me despertou de meu sono, acordei assustada, ainda sonolenta, sentia meus olhos grudados pálpebra com pálpebra, mas me acalmei, supondo que era apenas o vento que corria contra as frestas da janela, e uivava me chamando para ver as luzes da noite, me dirigi trôpega então até a janela da cozinha, cogitei acender a luz, mas imaginei que iria me causar dor nos olhos, então segui apenas pela iluminação que a lua me proporcionava, cheguei à janela, e empurrei com mais força para que ficasse completamente fechada, após isso feito, tudo certo, me direcionei para o quarto andando pelo carpete, passando pela sala de jantar, me sentia tonta de sono, sentia os olhos mais e mais pesados, até que de repente, bati meu dedo mínimo na quina da mesa, esbravejei e xinguei calada, agora com lágrimas nos olhos, irritada segui meu caminho até o quarto.

No quarto eu fiquei de frente para a cama e deixei que meu corpo caísse desfalecido, e meus olhos se fecharam de súbito, quando estava quase adormecida escutei novamente um barulho, mas dessa vez com maior sonoridade, notei que não era no meu apartamento, mas possivelmente no recém abandonado 302, senti um calafrio me subir a espinha, e fez com que meu corpo despertasse por inteiro, eu morava no 402, acima do quarto 302. Após algum tempo de um breve silêncio, pude ouvir o vento uivar, e as paredes estalarem, e novamente sons vindo do andar de baixo, emudeci, diminui meu ritmo respiratório, cogitei em verificar o que estava acontecendo, estava com medo demais para isso, não conseguia mexer nem um músculo se quer para me mover da minha posição atual, fiquei ali, estática, encoberta com apenas os olhos alertas de fora do cobertor, espreitando a noite, até que o sol punha-se a se levantar no horizonte, e os primeiros ruídos matinais de uma segunda feira brotavam, e em fim pude adormecer.
Quando me despertei, era por volta das quatorze horas, sentia fome demasiada, me levantei de prontidão com minhas pálpebras engomadas uma sobre a outra me dirigi ao banheiro. O banheiro era frio, e mesmo morando sozinha me trancava dentro do banheiro, para que a solidão dos outros cômodos não me tirasse a privacidade, mesmo de dia, a casa era escura, faltavam meios com que a luz adentrasse, porém para mim era o suficiente, os raios solares que invadiam o banheiro eram o bastante para que eu pudesse ver meu rosto deformado por horas seguidas com o mesmo pressionado contra o travesseiro, notava também meu cabelo espalhado por toda minha cabeça, sem forma alguma, apenas caos.
Decidi então tomar banho, banhos sempre foram momentos íntimos, não apenas por estar nua, no banho, eu estava sozinha, despida de roupas, de preceitos, e influências, era um dos momentos mais profundos de introspecção intimista, onde eu poderia ser eu mesma comigo mesma, banhos eram longos, me sentia extremamente bem com a água quente acariciando minha pele delicadamente do pé até minhas goteiras, e assim como a água caía, eu me afogava em pensamentos, e por ampla consciência ambiental, fechava a torneira, e me secava, parei em frente ao espelho, eu não gostava nem um pouco de meu corpo despido, via defeitos em cada parte, talvez eu não gostasse muito de me ser.


Saí do banho, comecei a me aprontar, deveria entregar minha crônica ao jornal até ás dezesseis horas, me desanimei por apenas pensar em fazer algo em que demandasse minha total administração do tempo. Eu trabalhava para um jornal local, onde publicava crônicas em dias intercalados, foi uma vaga que consegui por influência de minha mãe, que costumava a ocupar um dos cargos mais altos no jornal. Como estava indo entregar meu trabalho, me vesti de forma em que parecesse mais arrumada, geralmente me vestia como me convinha, mas sempre tratava de parecer mais cuidadosa quando ia ao jornal, pois era meu sustento. Já tinha tudo em mente, iria me alimentar, e ir ao jornal em seguida, tudo planejado, terminei de me arrumar, peguei as chaves, carteira, maço de cigarros, minha pasta, e desci. Na rua me sentia nauseada ao olhar para o prédio da calçada, suas paredes agora pareciam escarlates, me lembrara de tudo o que acontecera na noite passada, e sentia certa pressão nas têmporas, que fez com que me sentisse fraca e desnorteada, com a mão na cabeça comecei a me afastar lentamente do prédio, até que tomei outra rua.

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