terça-feira, 1 de setembro de 2015

Refinamento 1 - Adição 1

Era por volta das 2 da manhã, havia perdido a noção de tempo há muito, eu espreitava desnorteada pela janela observando as luzes nos apartamentos, e refletia sobre a vida quem habitava a aquela distância, instintivamente já estava acendendo mais um cigarro, porém antes de o colocar na boca, relutei, e jurei que seria o último, já havia fumado outros 19, por você, agora eu tragaria o último, pelo fim, também por relutância, foi o mais demorado, a noite estava fria, e o sereno corria pelo céu, e se juntava aos resquícios de lágrimas secas em meu semblante, fingi não me incomodar com aquilo que me causava certo desconforto na face, me sentia nauseada, e com forte enxaqueca, possivelmente devido as tristezas que se projetavam no mais profundo de meu ser durante as horas anteriores, quando me ocorrera a metamorfose, e que ainda refletiam em minha alma.

Não queria dormir, pois sabia que nunca mais seria a mesma, o que eu era ficou para trás, em um passado agora distante, como se nunca tivesse existido tal ser que um dia fôra eu. Encontrava-me perdida, sentada à cabeceira da cama, agora cabisbaixa, as luzes da cidade pareciam cada vez mais distantes, e turvas, todos já dormiam, exceto os malditos e os miseráveis, estava agora exausta, minha visão além de turva, cambaleava, o sofrimento havia vencido meus limites humanos, e assim mesmo, derrotada pelo cansaço adormeci, como quem já não havia mais vida, dormi mal naquela noite, calafrios percorriam meu corpo, e espasmos me sacudiam a todo tempo.

Acordei ao som das badaladas da catedral, era domingo, dia de missa, fui novamente para a janela ver as crianças irem contra vontade em suas roupas engomadas, eu não era muito diferente delas, era o que queriam que eu fosse, vestindo uma máscara, e fazendo meu reles papel na sociedade, de acordo com o que decidiam. Algo me incomodava, sentia um buraco em meu torso, e sabia que não se tratava de fome, então decidi preparar chá, não tinha apetite apesar de não me recordar quando havia sido minha última refeição. Com o chá pronto, voltei a janela, agora chovia, e observava as pessoas tentarem se esconder da chuva correndo para as marquises, me esquivava de beber o chá, agora já frio o deixei de lado, senti vontade de fumar e me recordei que havia fumado todos os meus maços noite passada, cogitei ir a rua comprar cigarros, porém não possuía disposição alguma para ir ao mercado, e encarar as pessoas, então me deitei novamente olhando para o teto.

Após um breve período fitando o teto, e tentando desvencilhar minha mente de traiçoeiros pensamentos, pude notar que chuva havia diminuído seu ritmo, agora já não agredia as janelas, suspirei profundamente e decidi ir à uma lanchonete próxima, fiz então um esforço enorme e um prolongado movimento para me levantar da cama, via meu reflexo no espelho, manchas negras sombreavam meus olhos fundos, vesti uma peça de roupa que pudesse me manter aquecida, recolhi as chaves e as coloquei no bolso, calcei botas, e tomei o elevador. No elevador estava sozinha, suspirei e de súbito fechei meus olhos por alguns instantes, com meus olhos agora abertos novamente, podia ver a imagem de uma pequena garota, com olhos curiosos que fitavam o chão, enquanto mordia os lábios, ela parecia um tanto quanto nervosa, após alguns instantes fitando o chão, ela me disse, sem levantar a cabeça -- Do que você tem medo? - Surpresa eu não a soube responder. -- Você tinha em si todos os sonhos do mundo, então por que os escondeu?, continuou ela. -- Por que usa essa máscara?, após essas palavras, me senti desnorteada, minha visão ficou turva, e me desequilibrei, fiquei apoiada nas paredes do elevador por um tempo, até me recompor, quando pude me recuperar, a garotinha já não estava mais lá, eu ainda não compreendera o que ocorrera há pouco , o que me deixou pensativa, quem seria aquela garota? Por que havida dito aquilo? Minha mente estava turbulenta, e meu coração estava disparado, me vi espelho, eu estava pálida, sentia minha boca seca, e uma gota de suor escorria por minha testa, estava apavorada, saí do elevador ainda cambaleando e tomei rumo a rua.

Na rua, eu me sentia um fantasma, todos passavam por mim e não me notavam, todos pareciam ocupados demais correndo de um lado para o outro sem ir à lugar nenhum, com suas vidas e rotinas corridas e estressantes, eu estava totalmente imersa em meus pensamentos que mal pude notar o quarteirões que se passavam, marcados de humanizações cinzas e sujas,  e assim cheguei em meu destino, uma lanchonete antiga, com uma simpática faixada vermelha, agora já gasta e corroída pelo tempo, não era muito frequentada, e por isso o ambiente me agradava, me sentei próxima do balcão, e o atendente veio ao meu encontro, era um rapaz de boa aparência, que sempre me atendia com um sorriso tímido no canto de sua boca e olhos cortês, ele me perguntou se eu queria o mesmo de sempre, mas como eu não possuía muitas energias, apenas acenei positivamente com o cabeça, por algum motivo, eu tinha a boca emudecida, meus pensamentos me cercavam e me sufocavam, me mantinham calada e cabisbaixa, sentia meus corpo pesado, tudo girava novamente, as cores e nuances de vermelho e outras cores começaram a se fundir em minha mente, tudo se embaralhava, quando repentinamente escutei -- Aqui está seu pedido! Você está bem? Parece um pouco pálida, recobrei minha consciência e agradeci, ele se virou de costas com olhos opacos, como se tivesse presenciado um evento muito estranho, então comecei a fitar meu café e sanduíche, resolvi me alimentar. Bebi o café por inteiro, estava quente e amargo, como eu gostava, desceu minha garganta e me aqueceu por inteira, mas deixei uma fatia do sanduíche intacto, não estava com muito apetite, fui então ao balcão para acertar, cheguei lá e a atendente não pareceu me notar, estava lendo um desses livros comerciais clichês feitos apenas para ganhar dinheiro, eu tinha uma enorme repugnância por esses livros que não eram escritos com sangue,  e isso me deixou um pouco irritada, então forcei uma tosse, para que ela me notasse, ela fez um "oh" assim que me viu, era sempre assim, ela sempre desatenta em seu mundo falso, e eu precisava chamar sua atenção, me sentia humilhada por isso, eu a franzi o cenho, paguei, e fui embora, sem abrir a boca, estava irritada.
Saindo da lanchonete, cruzei a rua, precisava tomar um caminho diferente, tinha de ir no mercado comprar cigarros e frutas, em meu rumo havia uma rua paralela, onde tinha um viaduto, em baixo desse viaduto havia um homem deitado, ele tinha olhos inexpressivos e desesperançosos fixos em algum ponto distante, seu rosto era fortemente marcado pelas mazelas de sua vida, aquilo me chateou muito, pois eu sabia que ele não era o único, pelo mundo todo haviam pessoas que se escondiam delas mesmas, possuíam vergonha do que eram, escondiam-se do mundo, do sol, e dos outros, não viviam a vida para que se fosse vivida, viviam à espera do fim, para que logo a vida os fosse tomada, pois para eles não havia sentido, a vida não valia a pena ser vivida, aliás, o que era viver a vida? Isso eu não sabia, acho que nunca saberia, sempre me perguntava sobre as coisas da vida, e nunca chegara a nenhuma conclusão. Nesse momento me sentei em uma parada de ônibus, e me lembrei de quando perguntei ao meu pai qual era o sentido da vida, e ele me respondeu que era ser feliz, ao menos era o que todos almejavam, desde então nunca mais o perguntei nada, o achei tolo por acreditar em tal futilidade, cheguei então a conclusão que todos estávamos à deriva da vida, com perspectivas falsas, senti uma grande necessidade de mais um cigarro, então segui meu caminho pela rua, que me parecia torta, e suja.
A mercearia se aproximava, já via na porta o senhor proprietário, era um homem de idade avançada, com problemas auditivos, que tinha uma cara fechada para todos, certamente odiava o que fazia, só o fazia por necessidade de dinheiro, ele se sentava na porta, em um cadeira de balanço escutando o rádio que era possível se escutar a quarteirões de distância, que noticiava sobre a guerra, e ele apenas acenava com a cabeça como se concordasse com o que era noticiado, enquanto fumava seu cachimbo fedorento , observava a chuva cair, e as pessoas passarem. Perdida em meus pensamentos novamente me desvencilhei do mundo real, e quando me dei conta havia pisado numa poça imunda, e notei que o velho me observava com seus olhos que pareciam esperar por isso há muito tempo, sentia seus olhos rirem de mim, enquanto sua boca continuava decrépita. Fui me aproximando mais e mais da mercearia, e ele me acompanhava com os olhos, e se certificou que eu iria sacudir minhas botas antes de entrar, entrei e ele não disse nada, fui direto para a fruteira, havia pouca variedade, a guerra estava atrapalhando a produção de alimentos por todo o país. Eu não concordava com a guerra, sempre acreditei que cada um deveria fazer o que bem entende sem incomodar o outro, acho também muita tolice tirar a vida de milhares por apenas pensarem de maneira diferente da sua, era algo que realmente me deixava chateada, pensar em tirar a vida de alguém que um dia poderia ser uma pessoa importante para o mundo me deixava realmente magoada, terminei de escolher as poucas frutas que estava em boas condições, e rumei para o caixa, a atendente era a mulher do velho, ela era um pouco mais bem cuidada do que ele, e tinha um semblante agradável, sentia nela uma forte aura materna, algo que me deixava confortável próxima dela, retruquei o sorriso então, -- São 6 dólares no total; disse ela, eu acenei com a cabeça e entreguei o dinheiro, peguei minhas compras e saí pela porta, e pude olhar pelos ombros que ela ainda se mantinha sorrindo para mim, com seus olhos quase cerrados, foi algo que me aqueceu o peito de alguma maneira. 

Novamente na rua, com suas pichações e imundices, via a chuva carregar nela sujeiras de meses, na cidade era assim, tudo se corrompia, até mesmo a chuva, que ao descer das nuvens já era contaminada por detritos que humanos produzem, e ao chegar ao seu destino, era violentamente rebatida por concretos cinzentos, as árvores não possuíam espaço para crescer, a natureza não se proliferava, era completamente rebatida pela humanidade, com esses pensamentos, decidi passar por um parque que havia não muito longe de onde eu estava, parques são assim, uma maneira que os homens encontraram de sentirem menos culpados por corromperem a natureza. Eu gostava da natureza, fazia com que eu me sentisse conectada com o todo o mundo, com o passado, o presente, e o futuro, com toda vida que já passou, e passará por nosso planeta, era agradável estar em meio à natureza, sentia que voltara de onde eu vim.


Me escondi em baixo de uma marquise, para acender um cigarro, mas o vento forte trazia com ele folhas, ar gelado, e gotículas, que maltratavam meu fogo. Acendi o cigarro, e dei uma longa tragada, sentia o sabor adocicado descer por minha traqueia e passear por meus pulmões, então expeli uma densa fumaça, que bailou no ar e sumiu junto à paisagem cinza. 

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